No final das contas, acho que nem ela sabia. Hoje eu sei que quando ela dizia "a realidade não era exatamente assim", ela queria dizer algo como "a única coisa a ser levada em consideração desse filme são as armaduras legais", pois enquanto referência histórica o filme é um nada. Como dizem alguns colegas meus que lecionam, é o velho esquema de "não tô a fim de dar aula, passo um filme e cobro resumo".
Mas os filmes, assim como outras manifestações artísticas de apelo massivo, podem (e devem) ocupar um lugar de maior importância na educação, principalmente no ginásio, quando os educandos se perguntam o tempo todo pra que diabos eles precisam aprender sobre egípcios, romanos, mongóis, povos aparentemente tão distantes entre si e da realidade contemporânea - e ainda por cima através daqueles slides tão mal feitos. Como aproximá-los? Talvez com samurais, demônios, viagem no tempo e robôs malignos.
Samurai Jack e a simultaneidade histórica.
Um menino, filho do imperador japonês, após ver sua terra dominada pelo demônio transmorfo Abu, parte em uma jornada pelo mundo, a fim de ser treinado em vários lugares e desenvolver diversas habilidades. Quando retorna e enfrenta o "xogum do sofrimento", é, no entanto, mandado para um futuro, aonde não apenas sua terra é dominada pelo inimigo, mas toda a galáxia. Vendo aquilo, ele resolve procurar formas de voltar para seu tempo e impedir que Abu se estabeleça como "mestre dos mestres".Essa é a sinopse de "Samurai Jack - o Filme" - longa que serve como prólogo para a série animada que foi transmitida no Brasil entre 2002 e 2006 pelo canal de TV paga Cartoon Network. O personagem pode ser pouco conhecido, seu criador não: Craig McCracken, que também roteirizou e dirigiu o longa (e a série do samurai viajante temporal), é o gênio por trás das Meninas Superpoderosas e da Mansão Foster Para Amigos Imaginários. Além de ser uma animação divertida, pode ser abordada em sala de aula de modo a ajudar na superação de alguns problemas que os professores de História tem para romper com o modelo factual de ensino.
Quando Jack parte de sua terra natal, levado por sua mãe, o objetivo é um só: treinar para poder voltar e livrar todos das garras malignas de Abu. Jack percorre o mundo e as civilizações e aprende de tudo um pouco: com os árabes, aprende a cavalgar e a lutar montado; com civilizações africanas, aprende a manejar (e se esquivar de) armas durante uma luta corporal; no Egito, seu aprendizado é em torno da escrita; desenvolve habilidades de countersubmission no Coliseu romano; se torna exímio no arco e flecha ao praticar nas florestas inglesas ao lado de Robin Hood; aprende artes marciais com os monges tibetanos.Tudo isso soa meio anacrônico, e em grande parte o é, mas é uma excelente oportunidade de chamar a atenção dos educandos para uma sensação que os livros didáticos ainda passam: a de que os povos "se sucedem". Primeiro os mesopotâmicos, depois os egípcios, seguidos de gregos e romanos (que são quase a mesma coisa, não é mesmo?), que dão lugar à sociedade feudal, que se instaura em toda a Europa com a queda do Império Romano. Ao mostrar Jack trafegando por todas essas civilizações, a animação dá a possibilidade de se discutir como, na verdade, esses povos não apenas existiram ao mesmo tempo, como também mantinham contato frequente na maior parte do tempo.
O historiador perdigueiro e a latido distorcido.
A obra ainda dá a deixa para se discutir a função da História - algo que, apesar de ser melhor trabalhado pela Academia, precisa ser mais acessível aos estudantes de Ensino Básico. No futuro, Jack conhece três cachorros falantes que lhe contam sua história: são arqueólogos e começaram uma escavação para descobrir a história da raça canina; ao ver isso, Abu resolveu se aproveitar de sua habilidade de escavação para buscar riquezas minerais, que mais lhe interessavam.Ora, como não relacionar isso com a própria gênese da História enquanto ciência? Afinal, em diversos momentos foi ao passado que se recorreu a fim de se afirmar ideais "do presente": foi assim com o iluminismo e sua ideia de razão luminosa, que contrastava com a ignorância tenebrosa do medievo; com o racismo científico do século XIX, que legitimava e se justificava no histórico de contato com os povos não-europeus; lá atrás, foi assim em Roma, quando, ao ver o assédio dos povos ditos bárbaros se tornar mais frequente, o passado, republicano e pagão, foi lembrado com nostalgia e associado a tempos de paz (que, na prática, nunca existiram); e, claro, foi ao passado que os Estados Nacionais recorreram na ânsia de se legitimarem.
Também desperta a discussão no que tange ao papel da disciplina histórica no projeto pedagógico humanista: os cães estavam escavando para descobrir o seu passado, saciar a curiosidade e tentar preencher a lacuna da origem da sua espécie. Não consegui não pensar na analogia feita pelo historiador francês Marc Bloch, que afirmava dever o historiador seguir o exemplo dos ogros lendários e ir atrás do cheiro de carne humana. A oportunidade, aqui, é a de discutir a História enquanto Ciência Humana; local, sim, mas, ao mesmo tempo, global - afinal, é necessário saber reconhecer o alcance dos eventos e processos históricos.
"É que nem fofoca".
A obra de McCracken, ainda permite outros milhões de problematizações: choque cultural, a estereotipificação de povos, a clara relação entre Abu e o Grande Irmão de Orwell e a quase total ausência de personagens femininas são algumas delas, todas pertinentes o suficiente para serem abordadas no início de um curso de História. Tudo isso é facilitado por se tratar de uma animação, uma linguagem cotidianamente associada ao lúdico e, por isso, teoricamente mais fácil de se utilizar na desmistificação de certos pontos. (Abro parênteses: digo isso por quê, ao discutir sobre a obra com minha irmã de 11 anos, não percebi nela a mesma confusão presente em minha cabeça e na de meus colegas de sexta série, facilitando a "desmitificação" de alguns aspectos da obra, como a falta de posicionamento temporal da trama)
O que se deve lembrar, acima de tudo, é que não importa a mídia, a linguagem ou o tema: o importante no exercício educativo é o diálogo entre as concepções, visando a síntese de ideias. E como os resultados são sim importantes, deixo registrados os meus: assisti ao filme hoje pela manhã na companhia da minha irmã e, em seguida, o discutimos. Ela aprendeu um pouco sobre a função da História e da necessidade de se desconfiar de tudo que se ouve - e parece ter ficado animada com isso. E eu aprendi com ela que a melhor analogia a ser feita sobre a produção científica: "é que nem fofoca, né? por mais que seja seu melhor amigo falando, você tem que desconfiar, por quê, né? quem conta um conto aumenta um ponto".
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ERRATAS:
- O nome do filme é "Cruzada", e não "Cruzadas" como eu havia escrito anteriormente.
- Eu o assisti na minha oitava série, não na sexta, como havia dito.
- Minha irmã tem 11 anos mesmo, rs.
Agradeço a Quesia e Jorge pelos toques :)



