
Um palco vazio. Na mesa de conferência jaz um livro, solitário. Seguem-se cenas que em nada devem aos registros documentais desse gênero discursivo: as desculpas do mediador pelo atraso do palestrante, a chegada do autor e sua apresentação – tudo tomado por planos longos e impessoais. Os aborrecidos minutos iniciais de “Cópia Fiel” certamente não convidarão a ver o filme mais que a escassa plateia que aguarda que o palestrante James apresente sua obra.
O tema da palestra é também o da película, denominada segundo o título do livro. A reflexão sobre a relação entre cópia e original guia o debate pelo espaço de duas horas de projeção, originando um trabalho fronteiriço: o roteiro tem diálogos copiosos que em nada devem a uma obra literária; a fotografia rebuscada e elegante nada deve ao cinema; sem contar que o filme toca o campo teatral pela adoção do “teatro dentro do teatro” – característica que se faz presente na cena dramática ocidental há cinco séculos (com Shakespeare em “Hamlet” e “As You Like It” e com Pirandello em “Seis Personagens à Procura de um Autor”, por exemplo).
“Cópia Fiel” manda às favas os limites entre as artes e coloca em destaque a própria natureza artística. O que condiciona nosso olhar à obra de arte? Walter Benjamin diz que cada original é dotado de uma aura atribuída pela tradição, que torna o objeto único. Nesse sentido, as cópias das pinturas e esculturas, mesmo fieis, estariam destituídas desse caráter de unicidade. Por isso, a Mona Lisa original de Leonardo Da Vinci vale milhões de vezes mais que qualquer reprodução dela. A original tem um valor simbólico do qual as cópias estão destituídas - por isso, é protegida por um avançado aparato tecnológico e visitada diariamente por admiradores emba(s)bacados. Tal ideia é debatida no filme pelo casal de protagonistas enquanto passeiam pela histórica região da Toscana.
Ao sair da Universidade (onde era discutido o livro) e da loja de antiguidades de “Elle”, o filme ganha densidade, pois incorpora a natureza como elemento. A discussão em torno da originalidade ganha nova dimensão. Ela não está mais no objeto artístico, mas sim naquilo que é tomado como modelo para a criação da arte – a natureza, as pessoas. É possível recuperar o rastro histórico dessa reflexão. A relação entre arte e realidade já foi bastante discutida anteriormente, por inúmero autores, dentre eles Oscar Wilde, que, em sua “Decadência da mentira” (1889), afirmou que, na verdade, é a natureza que imita a arte, já que o modo como enxergamos a natureza é condicionado pelas artes que nos tomamos como referência.
O filme busca um meio termo entre essas conclusões, tocando numa questão (pós)moderna: não há uma realidade inata, o que há é o que apreendemos dela – e o que enxergamos é pautado por inúmeras influencias sociais e culturais. Sendo assim, somos o que inventamos ser. A arte, na medida em que nos leva a explorar novos “eus”, torna-se o espaço em que os indivíduos se dão conta de suas possibilidades.Fernando Pessoa disse que é na distância de nós que descobrimos quem somos. O tema tem espaço na literatura já alguns séculos. Se Abbas Kiarostami não inovou no tema, inovou no modo de tratá-lo, já que leva suas personagens a renegociarem constantemente seu lugar na ação, o que multiplica a força de sua “encenação”.
As personagens de “Cópia Fiel” experimentam literalmente a teoria que defende a identificação dos leitores com as personagens criadas: ao invés de experimentarem outras vidas à distância, a mulher e James lançam-se no jogo de criação de personagens, abandonando os papéis que usualmente interpretavam. A Toscana torna-se palco de um processo de descoberta de si e de desdobramento do eu. A ideia de que o mundo é um palco e nós meros atores é em “Cópia Fiel” muito trabalhada, já que o “travestimento” parte dos dois lados – conhecemos pouco das personagens até elas começarem a se reinventar. Ao mesmo tempo, o espectador, afoito para entender o que se passa, revisa mentalmente o caminho que já foi percorrido pelas personagens e questiona tal representação: será essa atuação mais real do que o papel assumido pelas personagens em seu cotidiano? Ou será apenas uma realidade mais fictícia?
Para compor a questão cinematograficamente, o diretor utiliza os jogos de espelho que multiplicam a “realidade”, detalhando suas várias gradações. No antiquário escuro, onde predominam originais e cópias de obras de arte, vemos James conversar com “Elle”. Na clara praça da cidadezinha da Toscana para onde as personagens viajam, apenas vemos a escultura dos amantes refletida no espelho que está no meio do casal, em segundo plano – a “originalidade” da mulher e de James é aqui ressaltada, mesmo que ambos estejam dando corpo às personagens que criaram (porém, onde exatamente acaba a realidade e começa a ficção?).
O belo cenário, aliás, não serve apenas para ostentar histórias de amor pueris: nele a amargurada mãe solteira desdobra-se na esposa de James: ora cética, ora melodramática, ora romântica, ora sensual – toda uma vida (ou então muitas vidas) compactada em umas poucas horas, o espaço de uma tarde. Quando o casal de Kiarostami discute a relação turbulenta que inventou para si, está discutindo o papel de cada um de nós na sociedade: os papéis sociais que interpretamos são em grande parte condicionados pela nossa herança cultural – é por isso que a língua, importante fator identitário, desempenha papel fundamental na película, construindo simbolicamente a aproximação e o distanciamento entre a(s) mulher(es) e James.
Juliette Binoche é, ao meu ver, grande responsável por essa história complexa (e até mesmo academicizante) funcionar tão bem. Não é novidade dizer que a atriz atua e fotografa muito bem. Aqui, no entanto, constrói nos mínimos detalhes as nuances de suas personagens, circulando com fluidez pelo francês, italiano e inglês – idiomas que mostra dominar com perfeição. É muito difícil encontrar numa pessoa essa percepção sensível do estranho ao ponto de conseguir colocar-se tão inteiramente em sua pele (questão, aliás, que é o cerne do filme). A atriz faz com que nos identifiquemos com cada desdobramento que cria de si prória, o que só faz sublinhar o caráter representativo da arte – e da vida.
Porém, se no campo da arte as possibilidades são infinitas, na vida temos de lidar com os liames que nos foram socialmente impostos. A mulher e James precisam pôr um ponto final em sua encenação no momento em que esses liames são ameaçados. Mas como terminar algo que não se sabe aonde começou? Nesse momento, já pouco importa se James e “Ellle” tem um relacionamento amoroso anterior aos acontecimentos narrados na película ou se apenas fingem, se os sentimentos que expressam são originais ou cópias. Repito, assim, a questão que James lançou a “Elle” quando esta lhe disse que a tela que atraía a atenção da multidão de visitantes do antiquário era uma cópia: as pessoas precisam mesmo saber disso?